quando eu era miúda brincava com bonecas mas não brincava às mães.
brincava mais às manas ou às amigas. ou às "cenas".
as brincadeiras tinham quase sempre um problema demasiado "humano" para resolver. então eu ia lá e conversava imenso com as bonecas dispostas nas cadeiras ou nos sofás.
primeiro falava eu. depois dava-lhes a oportunidade de falarem elas.
elas não falavam por aí além.
mas havia sempre uma que falava um bocadinho mais. era a que tinha o nariz mais empinado e tinha a mania que era chica esperta mas eu chegava para ela. geralmente ela acabava sempre escarlate de vergonha por ter sido rude.
havia outra que era muito triste, era triste de nascença, aquilo já era genético.
havia uma que chorava sempre que começava a falar.
geralmente eu acabava as "cenas" com grandes palestras para uma platéia de boneca, rendida e chorosa. é que quando eu falava punha música para a coisa soar mais série e emotiva.
havia sempre um rapaz nas "cenas".
tinha a cara do Gregory Peck ou do Paul Newman.
vestia-se lindamente, muito melhor do que nas revistas.
cheirava divinamente, tinha as mãos fortes e dava beijos bem comportados.
apaixonava-se perdidamente por mim quando me ouvia falar mas era assediado por todas as outras bonecas, que quando o viam ficavam doidas varridas.
no final vinha ter comigo.
falava-me numa voz grossa mas suave.
pegava-me na mão e eu ia.
e com ele corria mundo e vivia feliz para sempre, como nas histórias.
para ti, que me fazes ficar, hoje, o mais próximo da felicidade que eu sentia quando brincava assim.