A mulher senta-se à minha frente no autocarro. Tem olhos de cor azul-triste, cabelo marcado pela travesseira, casaco de malha que cheira a refogado e carteira de plástico a imitar uma Louis Vuitton.
Imediatamente a seguir senta-se outra senhora (ao meu lado e de frente para a mulher de olhos tristes). Diz-lhe com uma voz sentida:
- Atão, há muito que não te via.
A mulher de olhos tristes responde com voz ainda mais triste:
- Atão tu? Também não te via há muito.
- Cá ando. E tu? Como estás?
- Fui-me outra vez abaixo.
Nessa altura várias cabeças no autocarro se voltaram para ver quem é a mulher que se foi outra vez abaixo. Eu própria me arrisco a lançar-lhe outro olhar.
- Não me digas… - diz a outra.
- Foi tudo junto. O Natal, o marido desempregado, filho desempregado. Tenho de ser eu a por o comer na mesa.
- Pois é, os homens num têm noção das coisas, a bem dizer.
- Pois é.
- E está tudo pela hora da morte, cum caraças. Tudo aumenta.
- O passe atão é que aumentou, aldra.
Passa-se mais um bocado. Continuam a falar de desgraças. Passam dos passes de autocarro para a luz. Depois para os tempos de antigamente em que se vivia à grande e à francesa.
Às tantas a mulher que se sentou ao meu lado diz para a mulher de olhos tristes:
- Olha lá, o que é que tu tens aí na boca? – E di-lo num tom de voz que já não é sentido, e sim em tom de alarme, parecendo uma corneta que acorda a infantaria.
Nessa altura várias outras tantas cabeças no autocarro se voltam para ver quem é a mulher que tem alguma coisa na boca. Eu não olho para a mulher triste. Olho para a mulher que lhe fez a pergunta naqueles modos.
- Ando a arranjar a boca…
- Pois nota-se, mas o mecânico fez aí uma porcaria de um trabalho. Deixou-te isso tudo torto.
- Estes dentes aqui que estão mais altos?...
- Esses dentes, saem-te pela boca fora… devias mas é tê-los tirado.
- São eles que estão a segurar a placa. Tenho que deixar que eles caiam por si…
- Pois mas é esquisito… até estás a falar a arrastar a língua e tudo…
- Isto daqui a uns tempos já está composto…
- Mas o mecânico não fez aí um bom trabalho, não.
A mulher triste encolhe tristemente os ombros. Felizmente levanta-se, quase de seguida, para sair.
- Tudo de bom. – Exclama.
A outra dá-lhe uma palmadinha nas costas.
- Tudo de bom. As tuas melhoras.
Ficamos sozinhas no autocarro. Eu e a mulher que está sentada ao meu lado.
- Ai meu Deus. – Suspira com ruido. Este “ai meu Deus” é para mim. Deve funcionar para muita gente como início de conversa.
- Que vida esta. – Continua. Desta vez olha para mim.
Noutras situações eu responderia e era bem capaz de ir a conversar com ela até ao meu destino. Mas estou irritada. Fico zangada com aquela conversa da treta que transformou, a mulher triste, no centro das atenções.
Tenho vontade de me virar para ela, a mulher que está ao meu lado, e dizer-lhe:
- Minha senhora, meta-se na sua boca e deixe a boca dos outros em paz…
10/01/13
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2 comentários:
o teatro do dia a dia, Laura.
cada vez a puxar mais para o drama, quando o que precisamos é de comédias...
absolutamente brilhante.
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