12/04/16
o meu grande medo de miúda
Quando era criança, a minha mãe fez-me ver (sem qualquer intenção danosa) a empregada que já vinha de casa dos seus avós, morta.
Chamava-se Amélia, tinha Parkinson, e tinha uma trança enorme, que desenrolava à noite e lhe chegava à cinta.
Via-a deitada no caixão, bem vestida com sapatinhos de verniz preto. Lembro-me do cheiro das flores que ladeavam a urna, da luz oblíqua que entrava pela janela, do fungar dos narizes que ali se encontravam e das vozes baixas.
Foi uma imagem que me martirizou nos anos seguintes; e afetava-me mais a visão do corpo inerte, a face com aquela tão característica falta de vida, do que a ideia da morte, propriamente dita.
A partir desse dia, e durante alguns anos, passei a “transportar” os mortos para debaixo da cama, para dentro do armário da roupa, para as esquinas das divisões da casa, pouco iluminadas. Lembro-me de adormecer, aterrada, a suar em bica, achando que uma mão deslizaria por debaixo dos lençóis para me puxar um pé e me levar. Até lhes conferia vozes e esgares. Na minha cabeça, materializavam-se tão nitidamente que chegava a ter a sensação que até lhes podia tocar.
Com a idade, essa visão foi ficando nublada. Foram desaparecendo pessoas que me diziam muito e esse terror transformou-se em resignação e saudade.
Ainda assim, sempre que posso, escapo-me de “ver” pessoas mortas, ainda que saiba que faz parte da vida.
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10 comentários:
Também me levaram a ver um menino num esquife branco, coberto até ao pescoço com santinhos. Levei muito anos a esquecer o medo de que os mortos me viessem tocar.
Beijos, Laura :)
Escreve tão bem. Gostaria de a ler em papel - romance, poesia?
Comigo passa-se e sempre se passou o contrário.
Vejo sempre os meus mortos. Apazigua-me. É uma espécie de confirmação... Não sei bem explicar.
Lembro-me que vi o primeiro morto, um amigo, aos cinco anos. A família tentou impedir-me com receio de ficar impressionada, mas eu gritei muito e teve de ser.
Interessante verificar estas diferenças.
Um bom dia, Laura!
Também está longe de ser uma das minhas visões preferidas, Laura.
Mas fui sempre protegido na infância dessas imagens marcantes.
Já me impressionou mais. Agora vejo-o como uma espécie de aceitação, de homenagem e de fecho. Tenho uma imensa necessidade de fechar dentro de mim, estas coisas, da dor e da morte.
Pois, Maria, imgino... beijinho. :)
Obrigada José...
para já ainda não.
as minhas palavrinhas só aqui, em casa, ou no palco :)
Isabel, espero um dia chegar aí... mesmo...
bom dia para ti.
beijinho
Luís, tiveste sorte.
Provavelmente lidas melhor com isso agora...
VZd4, interessante essa maneira de ver as coisas.
beijinho para ti
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