Quando termino avanço rapidamente de folha não sem antes voltar os olhos para o corredor, para um senhor de média estatura, barba grisalha, cabelo revolto e com falta de pente. Usa calças de sarja e uma camisa do mesmo tecido. Ao pescoço uma máquina fotográfica daquelas que a gente olha e tem obrigatoriamente que pensar que devem ser boas e caras porque têm um aspecto bom e caro. É engraçada a forma como ele caminha ondulante pelo corredor e segura a máquina, com uma das mãos. É que a maquina está presa no pescoço dele e como tal, não tem como cair, mas ele segura-a com uma atitude protectora, quase de pai. Tem uns olhos grandes, como se os olhos dele já tivessem visto muita coisa e fossem assim grandes, resultado do muito que vêem.
E o senhor de máquina ao peito e barba grisalha, ocupa, assim, a minha segunda página:
“Há quem passe uma vida a fotografar peixes.
Ele passara grande parte da sua vida a fotografar reencontros em estações de comboios.
Aquele momentozinho único em que as duas pessoas se encontram, o minuto, o compasso de tempo em que o coração pára e o relógio também. A luz, o clique.
Entre mães e filhos, entre amantes. Entre avós e netos, entre amigas. Entre pais e genros. Entre namorados de muitos anos e namorados de pouco tempo.
Ele passara grande parte da sua vida a colar em álbuns fotográficos, fotografias de reencontros em estações, numa altura da sua vida em que ele próprio se encontrava disponível para reencontros frequentes e fugazes.
Fotografava mãos pousadas em ombros. Bocas a procurar outras bocas. Corpos trémulos perdidos num abraço. Olhos desfocados e felizes. Abraços chorosos. Reencontros felizes.
Tinha dezenas de álbuns com dezenas de pessoas e de encontros.
Quando fez cinquenta anos sentiu-se só mas continuou a rumar às estações de comboio, às sextas e domingos. E começou, desde essa altura, a coleccionar despedidas.
Porque um dia viu uma mulher que saiu do comboio e que ficou parada na plataforma. Toda ela, corpo, frio, luvas e até a revista Visão que tinha debaixo do braço, procuravam alguém. Alguém que não estava. E isso era terrível. E belo ao mesmo tempo. Era uma situação triste, de perda, porém, com uma luz e uma intensidade extraordinárias.
Aquela mulher solitária fê-lo procurar outras pessoas solitárias que saem dos comboios a achar que está alguém à sua espera mas afinal não. Há 3 anos que as coleccionava.
Desejava ardentemente passar para um diferente estádio da sua vida. É que ele fazia da temática das suas fotografias o reflexo da sua própria vida.
Ultimamente começara a fotografar as pessoas assumidamente solitárias que saem sozinhas dos comboios e que sabem perfeitamente que não vai estar ninguém à sua espera. E destas, destacava as que aparentemente viviam bem com isso e as que tinham a solidão a desenhar-lhe o rosto.
Ambas tinham luz e o tal clique necessário para a fotografia.
Ele enquadrava-se no primeiro grupo, sem bem que havia dias em que tanta falta lhe fazia um pé na cama, à noite, ou uma tigela de sopa quente com dois dedos de conversa.
Podia ser que se começasse a fotografar os que saem dos comboios com ar triste mesmo a pedir que esteja alguém à sua espera, quem sabe, um dia destes não arranjaria maneira de combinar um encontro, uma tigela de sopa ou uma ida à Cinemateca.”
02/12/07
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1 comentário:
tenho lido atentamente as hitórias à volta da história deste rapaz... é impressionante dep+ois de ser ler estas hitórias, passar numa estação de comboio e olhar pra quem do comboio sai e entra... quantos "rapazes" e "raparigas" vivem estas histórias...
lindo... parabéns... bjs
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