Ele era sempre o último a fazer tudo. Até a ficar nas fotografias.
A mãe também não lhe deixava usar o cabelo cortado pequenino como usavam os outros miúdos. A mãe dele não compreendia, por vezes, o quanto é importante, em certas idades, ir-se atrás das “modas” ou ser-se igual aos outros.
Não se vestia, portanto, como as crianças normais. Antes com aquilo que vinha ficando dos irmãos mais velhos, que não tivesse muito borboto ou não estivesse muito roto.
E na pior das hipóteses, roupa de um tio de Setúbal chamado Arménio que morrera ainda criança e deixara uma descomunal colecção de calções de fazenda estupidamente femininos, de cores impensáveis, cuja fazenda lhe fazia uma comichão tal que o fazia ir às lágrimas.
Tinha roupas novas para o Domingo de Páscoa e para o dia de Natal. Cortava o cabelo na 2ª feira antes do Carnaval, todos os anos. Lá para Novembro desesperava-se com os caracóis fartos e fortes que começavam a crescer, cresciam assustadoramente e como não havia gel nem nada que se parecesse e mesmo que houvesse nas prateleiras do supermercado nunca haveria em casa dele porque era assim, ele punha no cabelo basicamente tudo o que encontrava que o pudesse sossegar, que pudesse matar aquele matagal de caracóis que era motivo de chacota dos rapazes e olhares invejosos das raparigas.
Ainda por cima não crescera muito. Era também muito magro. A maçã de Adão não havia meio de aparecer e as raparigas desabrochavam como os caracóis dele, a olhos vistos, pareciam procriar-se como os coelhos da avó e depois passavam por ele, redondas, cheirosas, com os lábios carnudos e os seios vivos, a querer saltar das blusas e ele ficava doido, ficava louco e não podia contar aquilo a ninguém porque uma vez contara ao pai que se sentia esquisito ao fundo da barriga e mais ao fundo e o pai dera-lhe um tabefe “e pareces parvo que tu ainda tens idade é para levar nessa cara” e então ele deixou de lhe contar essas coisas e também as outras todas e foi assim que um dia decidiu criar o seu universo, no seu quarto, à noite, depois de todos se deitarem. E fê-lo com tanta força e determinação que nos anos que se seguiram muita coisa mudou.
Aprendeu a desenhar bem. Copiava aviões e mulheres bonitas. Ouviu todos os discos dos pais, às escondidas e aprendeu frases bonitas que pudesse dizer às raparigas. Aprendeu, com os filmes, a sentar-se e a correr. A fazer ar de: incrédulo, satisfeito, apaixonado, tímido, desinibido, ultrajado, corajoso, herói salvador de uma tragedia qualquer tragedia, pai de família, tio solteirão, cowboy solitário e até freak. Aprendeu, com as revistas da mãe, a reconhecer batons mate e batons de brilho. A identificar o Chanel nº 5 e a fazer as contas do período menstrual. Leu Goethe e Kant. Esmiuçou os clássicos europeus e os americanos contemporâneos. Leu sobre ballet, plantas, música e medicina.
E quando finalmente achou que a sua aprendizagem estava completa despediu-se, uma noite, daquele seu mundo e agradecido, saiu para a rua, elegante e perfumado com o cabelo cortado pequenino.
E no bolso, a fotografia onde ficara em ultimo, pela ultima vez.