falava pouco, não por medo de falar demais.
só porque usava as palavras estritamente necessárias.
por exemplo, não dizia “que bela tarde de primavera” mas sim “tarde linda”.
a mãe obrigava-a a ler livros de historias, de muitas paginas, para que ela depois fosse obrigada a contar a historia que lera, com muitas palavras.
mas ela resumia aquelas páginas todas a meia dúzia de frases, sintéticas, habilidosamente reveladoras e bem construídas.
a mãe dizia-lhe, quando ficava exasperada, “é por isso que tens a boca pequenina, porque não falas, e olha que os homens não gostam de bocas pequenas e de raparigas que não falam”.
ela olhava para a mãe, sem expressão e pensava “há-de haver um que goste”.
a avó muito baixinha e magra, de pele caída de tão engelhada, que cheirava a laca e tinha cabelos que pareciam barbas de trigo, tinha pena dela e dizia-lhe “tens uma boca pequenina que parece um botão de rosa”.
e contava-lhe, às escondidas da mãe, uma historia de princesas.
uma historia fabulosa, em que as princesas falavam e das suas bocas saíam pétalas de rosa.
na historia, as princesas encontravam um príncipe e eram felizes mesmo depois de ficaram reduzidas a pó.
as outras miúdas, na escola, sussurravam entre si coisas mázinhas, trocavam bilhetinhos com crueldades escritas.
falavam pelos cotovelos nas aulas, nos intervalos, nos jardins.
ela entediava-se profundamente e entretinha-se, sozinha, a apanhar bichos de conta e a pensar que gostaria que, da sua boca pudessem um dia saír pétalas de rosa.
em casa, estava sempre perto da avó que cheirava a laca e que tinha olhos de chá.
na sua caixinha de lácamo, forrada a seda cor de cereja, escondida debaixo da cama de dossel, guardava os seus tesouros e um deles era uma folha de papel de arroz, com as (muitas) palavras que um dia ela diria ao rapaz que não se importasse que ela tivesse aquela boca assim pequena.
o outro tesouro, o mais importante, eram meia dúzia de pétalas de rosa, vermelhas, que a avó um dia lhe colocara ao lado do travesseiro, um dia em que a mãe ralhara muito com ela e ela chorara muito e ficara com os olhos fechados de tanto chorar.
quando despertou, no dia seguinte, encontrou as tais pétalas e um pequeno bilhete, de caligrafia impecável, um bilhete perfumado e com gotinhas de orvalho nos contas e um bicho de conta ao centro, que dizia:
“estas pétalas saíram da tua boca, esta noite. a tua avó”.