Já se apaixonara em supermercados, papelarias, quermesses, no metro, na cadeira do cabeleireiro, na página de um jornal, mas nunca, nunca se apaixonara numa porta giratória de um centro comercial.
Ela ia a entrar e ele ia a sair. Não interessa agora como é que ela ia vestida ou o que é que ele trazia na mão. Ou seja, não houve qualquer elemento exterior aos dois que os fizesse iludir com qualquer coisa. Não.
Ela ia a entrar e ele ia a sair. E olharam-se numa partículazinha de tempo invisível e teimoso, quando ela já tinha os dois pés pequenos dentro do compartimento direito da (grande) porta giratória e ele tinha os dois pés grandes no compartimento esquerdo da (grande) porta giratória.
Olharam-se de raspão mas não o suficiente para se verem.
Quiseram ver-se mais uma vez.
Ela fingiu que o telemóvel tocou.
Ele fingiu que deixou cair um papel que tinha na mão.
E então, deram mais uma volta na porta giratória.
Porém, ela não encontrou o telefone, dentro da carteira.
E no chão, acocorado, ele não encontrou o papel simplesmente porque não estava a olhar para ele. Estava a olhar para ela.
Ela não era boa a fingir que falava para telemóveis mudos e por isso corou até à nuca.
Ele não era bom a fingir espanto quando o papel caiu ao chão porque tinha sido ele a deitá-lo e então deu-lhe vontade de rir.
Com tudo isto, não se tinham visto ainda bem.
E então, decidiram dar mais uma volta na porta giratória.
Esqueceram telefones e papéis e… Olharam-se demoradamente, enquanto um homem barrigudo entrou a tossir nicotina para o compartimento direito e uma adolescente com música aos gritos nos ouvidos entrou a mascar chiklet com barulho para o compartimento esquerdo.
Às tantas, sem saberem porquê, numa cadência de espírito e num bater de coração, consertado, acertaram os passos, um com o outro.
E ao mesmo tempo entrou, no compartimento da direita, uma mulher jovem, de óculos escuros, que procurava dentro da sua Louis Vuitton o telemóvel, que tocava. E o toque do telemóvel, ó sorte fantasmagórica, ó música oportuna, de repente a mais melodiosa do mundo, de repente a mais bela do mundo, a música deles ali naquela porta giratória a rodar, …“Dream a little dream of me”.
Sentiram-se, obviamente, a andar de carrossel. Devem ter pensado nisto ao mesmo tempo. Riram.
Banda sonora tácita. Tremor nos membros inferiores. A paixão a sair da larva, a bater ainda fraca mas a agarrar-se à vida, com unhas e dentes.
Ela levou a mão à boca. Ele mexeu o pescoço.
A mulher saiu sem ter encontrado o telemóvel. Mas a música ficou com eles.
Ela quis dar mais uma volta. Ele quis dar mais uma volta.
E então, decidiram dar mais uma volta na porta giratória.
E nos olhos, disseram-se coisas e combinaram tomar um café ali mesmo ao lado, na casa agrícola.
E saíram e frente a frente ele olhou para ela, embasbacado, o corpo parado mas ainda a rodar, num frémito de palavras que lhe corriam nas veias, prontas a sair em todas as línguas, sem pontuações ou com todas as figuras gramaticais.
Ela olhou para ele, fixamente, demorando-se em cada linha do rosto, reconhecendo o rosto, rugas, sinais, memorizando poros e pequenos derrames.
E foi então que ela riu de repente, com vontade, chegou-se a ele e lhe disse, com a voz ainda a rodar:
- Tenho de ir vomitar, estou muito tonta…Esperas por mim?