nunca me apeteceu muito ir para a escola.
gostava mais de ver novelas e desfolhar revistas para ver mulheres com vestidos giros e sapatos altos.
de maneira que quando fui para a 1ª classe, fi-lo obrigada.
não era muito engraçada de aspecto; usava umas terríveis botas ortopédicas, cabelo à escovinha, teimoso e cheio de marcas do travesseiro e ainda por cima roía as unhas até aos sabugos.
para completar tinha umas pernas que apreciam uns palitos e usava uma roupa meia estranha, que passava dos meus irmãos para as mãos de uma costureira habilidosa, que era meia amalucada e criava, nos seus delírios de crença que em outra vida tinha sido aprendiz de costureira da Coco Chanel, peças únicas de um retro-kitsch delicioso.
não era, portanto, uma imagem propriamente simpática.
de maneira que lá para o segundo mês de aulas decidi incorporar a personagem feminina de uma novela que passava, na altura, na televisão (e que eu via às escondidas) e que era uma rapariga alegre, popular no seu circulo de relações sociais e muito, mas muitíssimo gira.
pois bem, comecei a falar brasileiro, na sequencia da incorporação e comecei também a fazer jus à minha disposição natural para ser popular.
lancei charme pelas raparigas de lacinhos e óculos de massa e batas cheias de nódoas, uma piscadela de olhos aos matulões e até fui bastante riquinha com as auxiliares de educação de joelhos gordos.
aprendi a copiar a palavra “amo-te” e eis que um dia, em que me sentia particularmente gira e brasileira, decido abordar o rapaz mais triste da turma – um mulato bem giro, de caracóis brilhantes e olhos negríssimos - um rapaz que estava sempre sozinho nos intervalos, por ser mulato, julgo eu, mas que tinha uma voz quente e forte, já para a idade.
entrego-lhe o papel , na aula, que diz “amo-te” numa caligrafia curva e balbucio uma qualquer palavra num brasileiro impecável.
não foi muito inteligente ter entregue o papel na aula, porque o Carlos (era o nome dele) ficou meio apalermado a olhar para mim com aqueles olhos negros, a professora magrinha chegou-se a mim, sorriu, fez-me uma festinha no cabelo, pegou no papel, leu, arregalou um bocadinho os olhos uma coisinha de nada, deu-me uma pancadinha nas costas e disse-me numa voz segura “dá-me o teu caderninho para eu escrever um recado para a tua mãe”.
a minha mãe foi à escola falar com a dona Maria José, que estava preocupada porque a menina de repente desatara a falar brasileiro e ainda por cima numa pronuncia rigorosíssima, “têm família no Brasil, é?”
e a minha mãe lá lhe explicou (como pôde) que a menina falava muito sozinha e fazia umas coisas que a ela, mãe, lhe pareciam espectáculos se bem que não havia publico, mas o deleite e a entrega da criança eram totais de maneira que aquilo de falar brasileiro era uma fase e que um dia destes passava.
e pronto, acho que foi aqui que começou a minha fatal queda para escrever para pessoas, sobre pessoas, com pessoas, a olhar tudo com extrema atenção, a perceber o sentido das coisas banais, a reconhecer os estímulos que levam as pessoas a agir, a pensar, a especular, a rir, a gozar.